Uma pequena história dentro de uma grande história

Dr. Lais Marques da Silva,
ex-Presidente da Junta de Custódios de A.A. do Brasil

Há uma pequena história, muito antiga, que nos ajuda a entender a fragilidade dos seres humanos, a sua necessidade de cooperar e, sobretudo, a entender o quanto dependemos uns dos outros.

Na mitologia grega, os deuses resolveram habitar o mundo e criar a humanidade. Criaram os mortais, os seres vivos, e também as condições para a existência de todas as espécies que iriam coabitar na Terra. Encarregaram Epimeteu, cujo nome significa reflexão posterior, ou seja, aquele que só se da conta da coisa errada depois que a fez, de prover os futuros seres vivos com as qualidades necessárias à sua sobrevivência. Assim, foram dados a cada espécie os equipamentos necessários para que se alimentassem e resistissem às intempéries, como: peles, lã, carapaça, etc. e ainda para se defender uns dos outros: as garras, chifres e velocidade na corrida.

Todas as espécies foram equipadas mas, no momento de criar o homem, nada havia sobrado. Epimeteu tinha esquecido dele e, assim, o homem continuava nu e desarmado. Para que essa espécie não desaparecesse, Prometeu, cujo nome significa previdente, foi chamado pelo imprevidente irmão, Epimeteu, e encarregou-se de roubar dos deuses o fogo e as artes para dá-las aos homens. Distribuiu as artes de que dispunha mas elas não eram suficientes, em número, para dar um conjunto completo a todos os homens e assim deu talentos diferentes a cada um de modo que, para sobreviverem, deveriam intercambiar as suas dádivas e, portanto, cooperar e o que resultou é que todos se tornaram dependentes uns dos outros. Prometeu também moldou os homens de forma mais nobre e os capacitou a caminhar de forma ereta. Desse modo, puderam se alimentar e resistir ao frio, mas continuaram não podendo se defender contra outras espécies por não possuíram armas. Mas o presente do fogo que Prometeu deu à humanidade foi mais valioso do que quaisquer um dos que tinham sido dados aos animais.

Os homens procuraram então estar reunidos para se defender dos animais e se agruparam em cidades, mas não conseguiram viver juntos porque disputavam entre si e, frequentemente, guerreavam uns contra os outros. Como conseqüência, dispersaram-se pela floresta e foram novamente ameaçados de extinção pelas outras espécies de animais. Dessa vez, foi o próprio Zeus, o Deus mitológico maior, que salvou os homens dotando-os de qualidades morais, de senso de justiça e de respeito de si mesmos, o que permitiu que cada um pudesse viver em coletividade com os outros. O gênero humano foi salvo e por isso, hoje, os homens vivem em comunidades e não isolados, como a maioria dos outros animais. Mas os homens continuaram frágeis e desamparados e é isso que nós somos e a nossa sobrevivência continua dependendo de que troquemos as nossas dádivas, as nossas riquezas interiores.

A vida é difícil. Encontrar o caminho que se vai trilhar na vida é difícil. O caminho tem que ser feito em solo árido e pedregoso, e machuca. Não há indicações nem avisos. Nenhuma orientação. Em realidade, cada um de nós faz o seu próprio caminho ao longo da vida e o caminho é feito tão somente ao caminhar. Mas a boa notícia é que não temos que fazer o caminho sozinhos e podemos recorrer a um poder maior que nos dá força e do qual a maioria das pessoas tem consciência. Ainda mais, na medida em que vamos fazendo o nosso caminho, podemos nos ajudar uns aos outros, intercambiar os talentos que recebemos. Podemos trocar nossas riquezas interiores. Podemos trocar experiências, forças e esperanças. Podemos cooperar uns com os outros. Podemos nos solidarizar. Podemos ser tolerantes. Podemos ser solidários e desenvolver o amor ao próximo.

Podemos nos compadecer. Podemos entender que somos irmãos. Assim, Ele não estará apenas no meio de nós, como que espalhado num grupo de seres humanos, mas entre nós. Presente a partir do nosso relacionamento fraterno. Então, teremos condições de vislumbrar o caminho e encontrar a coragem para trilhá-lo. Como não é possível simplificar as coisas e obter respostas fáceis, é preciso pensar de modo abrangente, aceitar os mistérios e os paradoxos da vida e não desanimar ante a multidão de causas e conseqüências que são inerentes a cada experiência humana. Enfim, aceitar e valorizar o fato de que a vida é complexa.

Agora, vamos ao homem e às suas instituições. No caso do A.A., à Irmandade, como um todo. Aos serviços que definem a ação. O A.A. é uma irmandade em ação.

No mundo em que vivemos, existem as autoridades, os líderes, os governantes, os chefes, o Papa, etc. e, desde pequenos, nos acostumamos a recorrer à autoridade dos nossos pais e a essas outras autoridades. Resumindo, nos acostumamos a procurar uma orientação que vem de fora. Essas autoridades se apoiam em dogmas, em normas estabelecidas ao longo do tempo, na força da imposição, ou seja, numa estrutura de poder, que pode ser definida como a capacidade de mudar o comportamento do outro e, quanto mais poder, menos liberdade. Mas tudo isso é muito estranho ao A.A.. Ele é fruto de uma concepção muito melhor, muito mais perfeita do que isso que acabamos de ver.

Historicamente, os cofundadores eram solicitados para dar orientações, idéias, sugestões ou até para buscar soluções para as novas realidades que iam surgindo em decorrência do fato de o A.A. ser uma Irmandade viva, em ação. Mas eles se deram conta de que as suas vidas eram finitas e que a irmandade, tal como era, tinha que encontrar, em si mesma, os melhores caminhos para continuar viva e em ação.

Seria algo como desenvolver um processo de autogestão, gestão que vem de dentro, e esse modelo se assenta no processo de busca da consciência coletiva que se constitui no alicerce desse modelo. É a chave para o seu funcionamento, baseado no fato de que o Poder Superior se manifesta em um determinado momento da troca de riquezas interiores e de cooperação e feita ao longo dessa busca da consciência coletiva.

Procurei estudar, conhecer esse processo e o que me foi possível entender, apreender, está colocado no trabalho sobre consciência coletiva. É a minha visão atual e, por certo, ainda incompleta.

Outro aspecto que gostaria de enfocar é o que revela um paradoxo. Mais presentes do que pensamos nas nossas vidas, apesar do desconforto que causam à nossa formação racionalista. Diz-se até que alguma coisa só é verdadeira quando contém o paradoxo.

É que o A.A. não muda, pois tem princípios sólidos, cuja vitalidade tem-se mostrado extraordinária ao longo de 72 anos da sua existência. Não muda, mas muda. Aí está um paradoxo.

Os animais pré-históricos que não mudaram também não mais existem e o A.A. não tem vocação para se tornar um dinossauro e muito menos extinto. O fato é que não muda na sua essência, mas se renova, se adapta, se atualiza a cada ano, porque a cada ano se repensa, se mantém com vitalidade renovada, mais especificamente, após cada Conferência.

Essa é a idéia-força que está subjacente a todo o processo da Conferência e que precisa ser identificada. Alias, é essencial que seja identificada para que os membros que dela participam tenham plena consciência da importância do trabalho que realizam.

A Conferência tem uma exterioridade, ela é bonita, mas tem, sobretudo, uma essência, um conteúdo interior maior e mais importante. Tem uma roupagem e um corpo igualmente muito bonito e, por certo, mais importante.

Um outro aspecto que é preciso destacar é que a realidade com que, a todo o momento, nos defrontamos não tem nada de simples. O mundo não é feito apenas em preto e branco, mas também de muitos tons de cinza e de todas as cores e suas nuances. A realidade se apresenta sempre sob múltiplos aspectos. Frequentemente, não somos capazes de identificar, sozinhos, toda a complexidade de uma determinada situação. Mas, se ela for analisada também por outros companheiros, aí teremos a possibilidade de, participando da busca conjunta da consciência coletiva, alargar o nosso campo de visão e conhecer melhor para melhor decidir e melhor agir.

Finalmente, vale ressaltar que, se a Conferência é colocada frente às realidades do A.A. do Brasil, isso não levará à conclusão de que resultariam irmandades muito diferentes nos diversos países do mundo e isso porque são realizadas reuniões mundiais, a cada dois anos, em que numerosos países participam e nas quais também se busca a consciência coletiva, a integração em um só corpo, sendo que as diferenças locais apenas enriquecem o todo e o A.A. será eterno, enquanto assim funcionar.