Saia do quarto, companheiro

“E foi aí que, de repente, viramos todos seguidores de Santo Agostinho, repetindo sua famosa frase: ‘Senhor, fazei-me casto e puro, mas não já!”

Era uma reunião do CRI – Conselho de Representantes Intergrupais – na Central de Serviços em São Paulo. Corria o ano de 1992, agitado em termos de serviços de A.A. Ali na sala, mais de cento e cinquenta pessoas, cada uma representando um Grupo de São Paulo. Discutiam propostas para divulgar a Irmandade, trazer novos companheiros, salvar mais vidas entre os milhões que ainda sofrem.

A discussão, como sempre, girava em torno da falta de apoio, da acomodação dos que frequentavam os Grupos, das dificuldades em encontrar gente para o serviço. Na coordenação da reunião, por força de encargo e circunstância, lá estava eu.

O debate corria solto, acalorado, com muitas queixas e poucos resultados objetivos. Foi então que, não sei bem por quê, me dirigi ao plenário: “Companheiros, sei que o assunto é outro, mas por favor me respondam, com toda a honestidade possível: quem, entre todos os presentes, já fez o seu Quarto Passo?”

Silêncio geral. Timidamente, algumas mãos se levantaram: uma, duas, três, quatro. Foi só. Abestalhado, constatei que, entre cento e cinquenta servidores de confiança, escolhidos por seus companheiros para representarem seus Grupos numa reunião para definir o trabalho da Irmandade na maior cidade do País, apenas quatro tiveram a coragem de olhar para dentro de si mesmos e, analisando suas limitações, estabelecer um sistema claro para evoluir como indivíduos! Por quê? Onde estava a dificuldade?

Desde então, tenho pensado muito no assunto. E, analisando fatos e experiências, inclusive minhas, cheguei a algumas conclusões.

O principal obstáculo para praticar o Quarto Passo está, na minha opinião, justamente no entendimento do porquê dele ser tão importante e essencial.

É que para isso precisamos, antes, compreender aquilo em que nos tomamos na época da ativa de nosso alcoolismo.

Quando a bebida deixou de ser a solução mágica para nossos problemas, quando ela começou a nos negar aquele estado maravilhoso em que nos sentíamos mais ricos, mais simpáticos, mais bonitos e mais inteligentes, com a sensação de sermos irmãos mais velhos de Deus, com um futuro fantasticamente promissor pela frente, viver virou um grave problema. Já estávamos acostumados a vencer qualquer desafio virando super-homens, utilizando o “shazan” líquido que acabava com a insegurança e nos enchia de eufórica certeza.

Como fazer agora? Não, não podia ser! O efeito salvador tinha que voltar um dia, devia ser uma questão de tempo – talvez a posição de Saturno no mapa astral, algum orixá em guerra, uma cochilada divina em relação a nós, seus filhos prediletos.

Era preferível sonhar, contar com o retorno dos bons tempos amanhã, do que encarar o fato de que o remédio era agora veneno. Nós não sabíamos viver sem ele! Por isso, continuávamos tentando, com um desespero cada vez maior, fazer a “mágica” funcionar de novo!

Enquanto isso, nossas vidas profissionais, nossos relacionamentos emocionais, nossos papéis sociais iam se degringolando. A decadência era um fato que ao mesmo tempo não podíamos negar nem aceitar. Porque aceitá-la seria admitir que nosso beber descontrolado estava nos levando à ruína, e nos propor a parar. Mas como, se não sabíamos mais viver sem a bebida, ou melhor, sem o estado que ela antes nos proporcionava?

A solução inconsciente para o dilema foi a de encontrarmos culpados pelos nossos fracassos. E lá fomos nós, fazendo caras de coitadinhos, de vítimas inocentes de um mundo cruel, apontando o dedo para todos aqueles que podiam ser culpados pela nossa derrota- a família, os patrões, o prefeito, o governador, o presidente da república, os políticos, os banqueiros, a economia. E finalmente, quando nenhuma desculpa era suficientemente forte, apontávamos o dedo para cima, em direção ao insondável e “descobríamos” o grande culpado: Deus, com sua “injustiça”!

E foi assim, viciados em jamais olhar para nós mesmos, que a dor de nossa angústia e solidão nos trouxe para Alcoólicos Anônimos. E aqui ouvimos falar de uma vida de feliz e serena sobriedade, se evitássemos o primeiro gole e praticássemos, do jeito que pudéssemos e compreendêssemos, os princípios contidos nos Doze Passos.

Evitar o primeiro gole, tudo bem, deu para entender. Afinal, era uma doença, e seu círculo vicioso precisava ser interrompido.

Mas, e o s Doze Passos? Para quê? Alguém nos disse, como era mesmo? Ah, sim! Para mudar nossa cabeça. Mas mudar, por quê? Mesmo assim, fomos em frente. Fizemos o Primeiro Passo com uma certa auto-piedade, o Segundo com ressalvas, o Terceiro… bem, pedir não custa nada, e tentamos. Aí, descobrimos que entregar não significa deixar tudo na mão do chefe, e sim fazer o que ele nos sugeria. E o que nos sugeria? Que mudássemos nossa maneira de pensar, nosso modo de encarar a vida.

“Mas como fazer isso?”, perguntamos. “Conhecendo melhor quem somos”, nos disseram. “E de que modo?”, insistimos. “Fazendo o Quarto Passo”,responderam.

E foi aí que, de repente, viramos todos seguidores de Santo Agostinho, repetindo sua famosa frase: “Senhor, fazei-me casto e puro, mas não já!”

Muitos, impregnados de velhos preconceitos e escudados em nosso velho hábito de descobrir culpados para tudo, sem nunca se olhar nem se responsabilizar por nada, veem no Quarto Passo uma espécie de campeonato para ganhar um troféu, ou seja, um levantamento de quem fez, durante seu alcoolismo ativo, o maior número de porcarias e crimes horrorosos.

A expressão “inventário moral” também nos assusta e amedronta, nos fazendo pensar em confessar para nós mesmos que não somos dignos do perdão de Deus. Mas se Deus nos fez assim e depois nos deu o A.A., já não estamos antecipadamente perdoados por Ele? Somos nós que temos que perdoar a nós mesmos e acreditar que, desenvolvendo nossas virtudes adormecidas e fiscalizando nossos pecados, retomaremos a rota que perdemos em direção à felicidade.

O próprio termo pecado, em hebraico, significa desvio do caminho, e arrependimento tem o sentido de reencontrar-se com o rumo. E eu jamais vi alguém, perdido numa estrada, que reencontrasse seu caminho se escondendo entre as moitas ou se auto-flagelando com o chicote da culpa. Culpa, aliás, é coisa de louco: uma absurda ansiedade por algo que já aconteceu.

E a palavra “moral”, no dicionário, não tem nenhum sentido “moralista”; está acompanhada da seguinte explicação: “conjunto de regras pelo qual um indivíduo, ou um grupo de indivíduos se harmoniza consigo próprio e com os outros que o cercam”.

Assim, um inventário moral é um levantamento das características de nossa personalidade que impedem ou ajudam-nos a manter um relacionamento harmonioso e feliz com nós mesmos e com os outros. Não se trata nem de levantar o que fizemos, mas sim o porquê fizemos. E, em vez de se concentrar apenas nas deficiências, que tal levantarmos também nossos pontos fortes? Se somos, por exemplo, avarentos, quem sabe não somos também ao mesmo tempo amigos leais? Ao invés de ficar tentando só desenvolver a generosidade para “destruir” a avareza – que é um produto da insegurança, a sua verdadeira causa – talvez fosse bom desenvolver ainda mais nossa lealdade, nosso contato

com os amigos, ajudá-los. Isso já está em nós e, enquanto a praticarmos não teremos “tempo” para “praticar” os defeitos.

O Quarto Passo, em resumo, é um mapa de nossa vida, uma identificação das vezes em que, andando pela estrada da realização humana, entramos no que julgávamos ser atalhos e agora, numa vista aérea, percebemos serem simples picadas que não levam a lugar nenhum. Deve ser feito imparcialmente, sem medo da verdade, nem atenuações. Não adianta desenhar uma ponte sobre o abismo, se a ponte não existir realmente. Veja o abismo como ele é, para poder ultrapassa-lo. Só assim poderemos voltar a nós mesmos e adquirir a verdadeira humildade, que para o A.A. não tem nada a ver com humilhação. Como diz nossa literatura, em algum ponto do Quinto Passo, humildade é a “consciência daquilo que realmente somos, aliada a uma sincera disposição de tudo fazer para chegar àquilo que poderemos ser”. Para ter consciência do que somos, precisamos nos olhar. E só nos olhamos pra valer quando fazemos o Quarto Passo.

Saia do quarto, companheiro! Saia do quarto, companheira! Nada de culpa, nada de vergonha! Não há culpa em se preparar um mapa para a viagem, nem vergonha em querer crescer. Agora, com o mapa feito, o caminho está aberto, com tesouros maravilhosos. Mas isso é uma outra história, que fica para outra vez. Vinte e quatro horas para todos!

Vivência nº 41 – Maio/Junho 1996