Quando abro as portas do grupo

O relato a seguir vale uma meditação

Quando abro as portas do Grupo e penduro nelas as placas de A.A., começo a sentir uma estranha sensação de pertencimento. Na calçada e nos ônibus, algumas pessoas me olham, mas elas não sabem quem sou, porque sou anônimo. Sou o coordenador do dia, responsável para que tudo corra bem naquela reunião. Uma reunião que pode salvar vidas – a minha, principalmente.

Vejo se há envelopes de correspondência pelo chão e percorro com os olhos a sala vazia. A sensação de pertencimento aumenta. A sala silenciosa, com suas cadeiras ainda vazias e paredes cheias de quadros, contém milhares de vozes – a minha, inclusive. Vozes que falam de perdas, mas também de ganhos; falam de dores, desespero e tristezas, mas também de esperança, amor e alegria. O sentimento de pertencer cresce ainda mais: esse é meu grupo base, o grupo do qual faço parte, o grupo do qual dependo para viver e, hoje, somente por hoje, sou responsável pelo seu bom funcionamento.

Acendo as luzes e vou direto para a cozinha. Abro a porta dos fundos, ponho o café para coar, examino o nível das bolachas. Tudo certo. Volto para a sala, vejo se os banheiros estão limpos e abastecidos de toalhas, papel e sabonete. Noto que os companheiros de ontem à noite deixaram as coisas em ordem, não será preciso varrer e nem recolher nada do chão.

Atualizo a lousa e dou uma espiada nos avisos, para ver se surgiu algum assunto novo. Verifico se o saldo da Sétima Tradição está bom ou se precisarei fazer um alerta quando passar a sacola. Depois, sento à mesa, pego a caneta e preencho o cabeçalho da ata do dia. Escrevo o Princípio de Ouro do dia e reflito no seu significado para mim. Então, confiro se o material de ingresso está ok, testo o cronômetro e checo se tudo que vou precisar está sobre a mesa e nas gavetas.

Releio o roteiro para repassar mentalmente o andamento da reunião, embora saiba que terei ajuda dos companheiros se errar ou esquecer algo. Por fim, pego o livro Reflexões Diárias e leio calmamente o texto do dia, uma, duas, até três vezes, mentalizando bem seus significados para mim. Marco a página para encontrá-la facilmente durante a reunião, fecho o livro e, nesse momento, sinto uma grande serenidade.

O mundo lá fora, com suas correrias, medos e violência, deixou de existir. Estou seguro e calmo. Olho novamente para as cadeiras vazias, imagino que logo mais haverá gente nelas e sinto toda a força que emana de uma sala de grupo de A.A. Volto à cozinha, pois a essa altura o café já está coado. Enquanto experimento se está bom de açúcar a campainha toca, anunciando que alguém está à porta.

Talvez seja um companheiro ou uma companheira, que poderão atuar na recepção. Quem sabe, alguém cheirando a álcool, ainda lutando para se afastar do primeiro gole. Ou talvez seja um novato, nervoso e envergonhado, procurando ajuda pela primeira vez. No fundo, não importa. Seja quem for, eu e o grupo estamos prontos para recebê-lo. Eu sou responsável – e infinitamente grato – por abrir hoje as portas da Irmandade de A.A., penso comigo mesmo, enquanto caminho até a porta.

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