Para a doença não mais progredir

Um companheiro descobriu que o alcoolismo pode ser progressivo em mais de um sentido e, para enfrentar tal condição, a recuperação precisa progredir, diariamente.

Quando cheguei à Irmandade, aos 36 anos de idade, sabia muita coisa sobre álcool, mas era completamente ignorante sobre alcoolismo. É doença progressiva, disseram os companheiros que me receberam. Imaginei que isso queria dizer beber cada vez mais e de modo mais frequente. Não foi difícil perceber isso. Era o que eu já vinha fazendo. Mas, nessa época não percebi que doença progressiva remete também a outra característica do alcoolismo, mais profunda e perigosa, conforme descobri bem mais tarde, após anos de abstinência.

Meus primeiros tempos em A.A. foram maravilhosos. Participei da fusão de três grupos pequenos num grupo maior, mais estruturado e com reuniões diárias. Os dias eram animados e cheios de coisas para fazer. Estava cercado de companheiros experientes na prática dos Doze Passos e também das Doze Tradições. Graças a eles, comecei a fazer trabalhos de Décimo Segundo Passo, entrei em serviço no meu grupo base e consegui ficar sem beber desde o meu primeiro dia. Gostava de ler e falar sobre o programa de A.A., mas não de praticá-lo. Cheguei a fazer um rápido Quarto Passo e também algumas reparações. Sentia-me bem. Melhor do que já me sentira em toda minha vida.

Voltei a estudar, terminei a faculdade, minha carreira profissional passou a evoluir. Depois de alguns anos, comecei a afastar-me do grupo. Continuava em contato com alguns companheiros, mas tinha cada vez menos tempo – e vontade – de ir às reuniões. Já sei que não posso beber, conheço o programa de A.A., meu alcoolismo está estacionado, não progride mais, dizia para mim mesmo.

Não notei, porém, que minha personalidade alcoólica continuava ativa. E o pior: estava progredindo. Não me dei conta de que continuava a ser – cada vez mais – imaturo, orgulhoso, egoísta, mentiroso, invejoso, medroso e, quando me sentia ameaçado ou contrariado, raivoso. Um ser acuado pela necessidade de aprovação. À noite dormia com sentimentos de culpa, vergonha ou raiva.  Muitas vezes sonhava que estava completamente nu, numa festa ou no meio da rua, fazendo mil artimanhas para esconder minha nudez, para não ser desmascarado e morrer de vergonha.

Tive depressão, fases maníacas, problemas com colegas de trabalho, com minha família, meus amigos, arrumava encrenca com gente que eu nem conhecia e nunca tinha visto. Comecei a fazer terapia e acreditei que estava melhorando. Triste engano. Sorrateiramente, a doença continuava a progredir. Na verdade eu estava cada vez pior, lutando para me equilibrar no fio da navalha das emoções.

Depois de 15 anos sem álcool, numa viagem com minha esposa, achei que merecia uma taça de vinho. Subitamente, bateu-me a “certeza” de que uma simples taça não poderia me descontrolar. De fato, nesse primeiro dia não me descontrolei. Isso me deu confiança para aumentar a dose no dia seguinte. No terceiro dia eu já estava caindo pelas tabelas e bebendo escondido. Foram mais cinco anos de bebedeiras e problemas progressivos. Fui demitido do emprego que tinha há 35 anos e, desocupado, comecei a beber pela manhã. Nunca tinha descido tão fundo, nunca estivera tão fracassado, nunca me sentira tão farsante, inútil e, apesar de tudo, nunca sentira tanta vontade de beber como naquele período.

Finalmente, aos 57 anos, voltei para A.A. Mas, ao contrário da primeira vez, não parei de beber no primeiro dia. Também nisso a doença havia progredido. Somente depois de algumas semanas consegui ficar 24 horas abstêmio. Tinha estancado, novamente, a progressão do álcool. Mas ainda não tinha estancado a progressão do alcoolismo. Continuava apegado aos meus velhos defeitos de caráter.

Um dia, ao tentar ajudar um companheiro recaído, acabei prejudicando-o ainda mais. Percebi que tinha me deixado levar pela vaidade e, pela primeira vez na vida notei, com horror, o quanto meu ego podia ser destrutivo e causar mal às pessoas – mesmo estando sem beber. 

Também pela primeira vez, senti verdadeiramente o desejo de mudar meu jeito de ser, abandonar meus defeitos, parar de causar sofrimento a mim e aos outros. Depois dos 60 anos comecei a ser honesto comigo mesmo, fui parando de contar mentiras – grandes e pequenas – e, aos poucos, criei coragem para fazer o Quarto, o Quinto e o Sexto Passos.

Hoje consigo dormir sem culpas nem vergonhas. Hoje sei que minha caminhada na estrada do modo de vida de A.A. também precisa ser progressiva. Não pode estacionar. Se minha recuperação não avança, fico vulnerável à progressão da doença em minhas ideias, comportamentos, relacionamentos. Hoje sei que isso pode me levar à loucura, à morte prematura ou a uma recaída, da qual posso não mais voltar.

 Cezar
São Paulo/SP Edição: 173 – Página  7