O anonimato é o alicerce espiritual de todas as nossas tradições

OS PRINCÍPIOS ACIMA DAS PERSONALIDADES

A essência espiritual do anonimato é o sacrifício.

Uma vez que as doze tradições de AA nos pedem repetidamente que coloquemos o bem comum acima dos nossos desejos pessoais verificamos que o espírito de sacrifício -bem simbolizado pelo anonimato – é o alicerce de todas elas. É a boa vontade comprovada de AA em fazer estes sacrifícios que dá ás pessoas grande confiança no nosso futuro.

Contudo, no princípio o anonimato não nasceu da confiança; foi o resultado dos nossos medos inicias. Os nosso primeiros grupos de alcoólicos era sociedades secretas. Só através de uns poucos amigos de confiança é que os potenciais membros nos conseguiam encontrar . Mesmo em relação ao nosso trabalho chocava-nos a mais pequena insinuação de publicidade. Apesar de ex-bebedores ainda pensávamos que tínhamos de nos esconder da desconfiança e do desprezo públicos.

Quando em 1939 apareceu o livro GRANDE chamamos-lhe “Alcoólicos Anônimos “. O seu prefácio fazia esta declaração reveladora : “é importante permaneceremos anônimos porque atualmente somos muitos poucos para atendermos ao grande número de pedidos pessoais que possam resultar desta publicação . Como somos na maior parte pessoas de negócios ou com profissões liberais não poderíamos nestas circunstâncias, prosseguir conivente com os nossos empregos; nas entrelinhas, é fácil perceber o nosso medo de que um grande número de recém-chegado pudesse quebrar completamente o nosso anonimato.

Á medida que os grupos de AA se multiplicavam também aumentava os problemas com o anonimato. Entusiasmados com a recuperação de espetacular de algum irmão alcoólico por vezes comentávamos aqueles aspecto íntimos e tocantes do seu caso que apenas o seu padrinho deveria ouvir. vítima ofendida declarava então com razão que a sua confiança fora traída. Quando tais histórias começaram a circular fora de AA foi grave a perda de confiança na promessa do nosso anonimato. Muitas vezes afastou pessoas. Claramente o nome de cada membro de AA assim como a sua história, tinham de ser confidenciais, se fosse a sua vontade . Esta foi a nossa primeira lição na aplicação prática do anonimato.

No entanto, com a imoderação que lhes era característica, alguns dos nossos recém-chegados não se preocupavam nada com o sigilo . Queriam proclamar aos quatro ventos o nome se AA, E era o que faziam . Alcoólicos que tinham parado de beber assediavam de olhos brilhantes, qualquer pessoa que bissexuais as suas historias. Outros precipitavam-se para os microfones e as câmaras. Por vezes embebedavam-se de uma forma lastimosa e desiludiam os seus grupos com um rude golpe. De membros de AA passaram a ser exibicionistas de AA. Esta fenômeno de contrastes deu-nos muito que pensar. Deparávamos com questões “ a que ponto deve um membro de AA ser anônimo ?” O nosso crescimento mostrava que não podíamos ser uma sociedade secreta embora fosse igualmente evidente que também não poderíamos ser um espetáculo de variedades.

Encontrar uma via segura entre estes extremos levou muito tempo.

Regra geral o recém-chegado queria que a sua família soubesse imediatamente o que ele estava a tentar fazer. Também queria contar tudo aos outros que tinham tentado ajudar – ao seu médico , conselheiro espiritual e amigos íntimos. Á medida que ia adquirindo confiança, achava que era bom explicar o seu novo modo de vida ao patrão e colegas de trabalho. Quando surgiam oportunidades de ser útil, descobria que podia falar facilmente sobre AA com quase toda a gente.

Estas revelações tranquilas ajudavam-no a perder o medo do estigma do alcoolismo e espalhavam a notícia da existência de AA na sua localidade.

Muitos homens e mulheres vieram para AA devido a tas conversas. Embora não seguindo á letra o princípio do anonimato, estas comunicações estavam bem dentro desse espírito.

Contudo , tornou-se óbvio que o método da comunicação oral era demasiado limitado. O nosso trabalho, em si, precisava de ser divulgado. Os grupos de AA tinham de chegar rapidamente ao maior número possível de alcoólicos em desespero. Como consequência muitos grupos começaram a ter reuniões que eram abertas a amigos interessados e ao publico, para que o cidadão comum pudesse ver, por si próprio o que era AA a reação a estas reuniões foi muito calorosa . Em pouco tempo os grupos começaram a receber pedidos para que oradores de AA aparecessem em organizações cívicas , grupos religiosos e associações médicas . Desde que o anonimato fosse mantido nestas ocasiões, e os repórteres presentes avisados para não usarem nomes ou fotografias , o resultado era excelente.

Depois, vieram as nossas primeiras incursões que foram empolgantes no domínio da grande publicidade . Os artigos que o PLAIN DEALER DE CLEVELAND publicou sobre nós fizeram com que cresceu o número de membros de uns poucos para largas centenas da noite para dia.

As notícias do jantar oferecido a Alcoólicos Anônimos pelo Sr. Rockefeller  ajudaram a duplicar o número total dos nossos membros no espaço de um ano. O famoso artigo de JACK ALEXANDER no SATURDAY EVENING POST fez de AA uma instituição nacional.

Outros contributos com estes deram origem a um reconhecimento ainda maior. Outros jornais e revistas queriam artigos de AA companhias cinematográficas queriam filmar -nos . A rádio e finalmente, a televisão, assediaram-nos com pedidos para participarmos em programas.

Que devíamos fazer?

Á medida que crescia estas maré aprovação pública a apercebíamos -nos de que uma oportunidade deste gênero tanto nos poderia causar um bem incalculável como um grande mal.

Tudo dependia da forma como fosse canalizar.

Não podíamos simplesmente dar-nos ao luxo de permitir que membros auto – nomeados se apresentassem como Messias, representado AA perante o público .O nosso instinto de autopromoção podia ser a nossa própria destruição. Bastava que um único se embebedasse em publico ou caísse na tentação de usar o nome de AA em proveito próprio para que o dano pudesse ser irreparável . A este nível (imprensa, rádio, filmes e televisão) o anonimato – anonimato a 100 por cento – era a única resposta possível.

Aqui, os princípios teriam de estar acima das personalidades, sem exceção.

Estas experiências ensinaram -nos que o anonimato é a verdadeira humildade em ação.

É uma qualidade espiritual envolvente que é atualmente atônica dominante do modo de vida de AA em todo o lado .Movidos pelo espírito do anonimato, tentamos por de lado os nossos desejos naturais de distinção pessoal como membros de AA, quer entre companheiros alcoólicos, quer perante o público em geral . Ao colocarmos de lado estas aspirações muito humanas, acreditamos que cada um de nós participa na tecelagem de um manto protetor que reveste toda a nossa sociedade e sob o qual podemos crescer e trabalhar em unidade.

Estamos convencidos de que a humildade expressa pelo anonimato, é a maior proteção que Alcoólicos Anônimos jamais poderá ter.

Quando o Grande “Eu” se torna “Ninguém”
Dr. Harry Tiebout, Psiquiatra

Grande amigo da irmandade desde 1939 foi o primeiro psiquiatra a reconhecer o trabalho de A.A. e a usar os seus princípios em sua prática profissional. Junto com outros médicos, o Dr. Tiebout acelerou e aprofundou a aceitação mundial de A.A. entre os homens da medicina.

O programa de ajuda de A.A. foi bafejado por elementos de verdadeira inspiração, e, em nenhum aspecto é mais evidente do que na escolha de seu nome, Alcoólicos Anônimos.

O anonimato constitui-se, naturalmente, em uma proteção de grande valor, especialmente para o recém chegado; porém, minha intenção presente é de enfocar um valor ainda maior do anonimato, na contribuição para o estado de humildade necessário para a manutenção da sobriedade do alcoólico recuperado.

Minha tese é de que o anonimato, cuidadosamente preservado, fornece dois ingredientes essenciais para essa manutenção. Esses dois ingredientes, na verdade, são duas faces de uma mesma moeda: primeiro, a preservação de um ego reduzido; segundo, a presença contínua de humildade ou simplicidade.

Conforme o que constatamos nas Doze Tradições de A.A., “o anonimato é o alicerce espiritual das nossas Tradições”. Cada membro é lembrado a colocar “os princípios acima das personalidades”.

Muitos de vocês talvez queiram saber o que essa palavra “ego” significa. Há tantas definições, que primeiramente é preciso esclarecer a natureza da necessidade da redução do ego.

Esse ego não é um conceito intelectual, mas sim um estado de sentimento – uma sensação de importância – de ser “especial”. Poucas são as pessoas capazes de admitir em si mesmas a necessidade de serem especiais.

Muitos de nós, entretanto, podem reconhecer ramificações desse procedimento e colocar uma denominação própria para elas. Deixem-me ilustrar: Nos primeiros dias de A.A., fui consultado a respeito de um problema sério que estava preocupando um grupo local.

O costume de se comemorar um ano de sobriedade com um bolo de aniversário teve como consequência o fato de que alguns vieram a se embriagar, pouco tempo depois da comemoração. Parecia que alguns não podiam aguentar a prosperidade. Pediram a minha posição a respeito; a favor do bolo, ou contra o bolo de aniversário.

Caracteristicamente, escusei-me por não pode ajudá-los, não por modéstia, mas por ignorância. Cerca de três ou quatro anos depois, o próprio A.A. forneceu-me a resposta. O grupo não teve mais esse problema, segundo o que disse um membro:
“Nós ainda comemoramos, mas agora um ano de sobriedade tornou-se lugar comum. Nenhum de nós precisa ter mais a menor preocupação com isso”.

Uma olhada ao que aconteceu, nos mostra o egoísmo, como eu o vejo, em ação. Em primeiro lugar, a pessoa que esteve sóbria por um ano inteiro, tornou-se um exemplo, algo para se admirar. Seu ego naturalmente se expandiu, seu orgulho floresceu e qualquer diminuição de egoísmo, obtida anteriormente, desapareceu. Tendo sua confiança renovada, acabou por tomar um drinque.

Tinha sido considerada especial e reagiu de acordo. Depois, essa parte especial se esvaiu. Nenhum ego é alimentado, estando na condição de lugar comum, e desse modo, o problema de ego elevado desaparece.

Hoje A.A., na prática, está bem consciente do perigo de se bajular alguém com honrarias e louvores. Os riscos da realimentação do ego são reconhecidos.

A frase “servidor de confiança” constitui-se num esforço para manter baixo o nível do egoísmo, embora alguns servidores tenham problemas nesse particular.

Agora, vamos dar uma olhada mais acurada nesse egoísmo que causa transtornos. Os sentimentos, associados a esse estado da mente, são de fundamental importância na compreensão do valor que tem o anonimato para o indivíduo – o valor de colocá-lo na condição de um mero participante do contingente da humanidade.

Certas particularidades demonstram esse ego, que vê a si próprio como algo especial e, por isso mesmo, diferente. É elevado em si mesmo, e propenso a manter, igualmente, suas metas e suas fantasias em alto nível. Menospreza àqueles que define como sendo vermes que rastejam penosamente, sem o ardor e a inspiração daqueles iluminados pelos ideais de tirar pessoa do lugar comum, prometendo a elas melhor sorte para o futuro.

Frequentemente, esse mesmo ego funciona ao contrário. Ele tira a esperança do homem, com suas falhas e fraquezas, e desenvolve um cinismo que amarga o espírito e faz de seu possuidor um realista excêntrico que nada acha de bom nesse vale de lágrimas.

A vida nunca obtém dele resultados plenamente satisfatórios, e ele vive uma existência amargurada, agarrando-se ao que puder no momento, mas nunca realmente participando do que acontece ao seu redor. Ele anseia por amor e compreensão e discursa incessantemente sobre o seu senso de alienação em relação àqueles que o cercam.

Basicamente, ele é um idealista frustrado, sempre voando alto e aterrissando baixo. Esses dois tipos de egoísmo confundem humildade com humilhação.

A seu modo as crianças atuam como bons terapeutas ou “redutores de cabeças”. São hábeis alfineta dores de egos inflados, ainda que seus propósitos não sejam, propriamente, terapêuticos.

A.A. teve seu começo justamente em uma tal alfinetada. Bill W. sempre se refere à sua experiência no Hospital Towns como uma “deflação em grande profundidade”, e naquela ocasião ouviram-no dizer que seu ego havia levado uma “surra dos diabos”.

A.A. nasceu daquela deflação e daquela surra.

Está muito claro que a sensação de ser especial, de ser “algo” tem seus perigos e suas desvantagens para o alcoólico. Já o oposto, ou seja, aquele que está fadado a ser um “nada”, tem pouca motivação. O indivíduo vê-se diante da possibilidade de ser algo e beber, ou de ser nada e também beber, por frustração.

O dilema, muito compreensível, reside na falsa impressão sobre o chamado oposto, o que está prestes a ser um “nada” e não vê alguma compensação. A característica de ser um “nada” não é facilmente desenvolvida.

Vai contra todos nossos anseios por uma identidade, por uma existência significativa, plena de esperanças e perspectivas. Tornar-se um “nada” parece ser uma forma de suicídio psicológico. Agarramo-nos ao nosso “pouco” com todas as forças de que somos capazes. A ideia de ser um “nada” é simplesmente inaceitável. Mas, o fato é que, se o indivíduo não aprender a agir como um nada, não conseguirá compreender que ele é apenas um mero cidadão do dia a dia, misturado na raça humana e, assim, estará sendo humilde perdido na multidão e essencialmente anônimo. Quando isso puder acontecer, o individuo terá conseguido muito a seu favor.

As pessoas com o “nada” em vista, podem relaxar e resolver seus negócios calmamente, com o mínimo de transtorno e de preocupação. Podem, até, curtir a vida da forma que ela vier.

Em A.A., isso é conhecido como programa das vinte e quatro horas, que significa, efetivamente, não ter o indivíduo o amanhã em mente. Ele consegue viver o presente encontrando a satisfação aqui e agora; não fica mais se acotovelando por aí. Sem preocupações, a pessoa se torna receptiva e mantém a mente aberta.

As mais importantes religiões estão cônscias da necessidade do nada, para aquele que pretende alcançar a graça. No Novo Testamento, Mateus (18-3) cita estas palavras de Cristo: “Em verdade vos digo; se não vos transformardes, e não vos fizerdes como meninos, não entrarão no Reino dos Céus. Por isso, todo aquele que se tornar pequeno como este menino, esse há de ser o maior no Reino dos Céus”.

Zen ensina a libertação pelo nada. Uma série de cenas com o intento de mostrar a evolução da natureza do homem termina por um círculo no interior de um quadrado. O círculo representa o homem em um estado de “nada”. O quadrado representa a conformação das limitações com as quais o homem precisa aprender a conviver.

Nessa concisa afirmação: “Nada é fácil, nada é difícil”, e outras mais, Zen também acrescentou a modéstia, a humildade e a graça.

Anonimato é um estado de espírito de grande valor para o indivíduo, na manutenção da sobriedade. Não obstante eu reconheça sua função protetora, sinto que qualquer discussão a respeito seria unilateral, se falhar na ênfase do fato de que a manutenção de um sentimento de anonimato, um sentimento de “eu não sou nada de especial”, é a garantia fundamental de humildade, e, consequentemente, a verdadeira salvaguarda contra futuros problemas com relação ao álcool. Esse tipo de anonimato é verdadeiramente um bem precioso.

Fonte: Revista Vivência n° 43 – Setembro/Outubro 1996

O Anonimato – Vivendo as Nossas Tradições

“Em nossas Doze Tradições, temos nos colocado contra quase todas as tendências do mundo “lá fora”. Temos negado a nós mesmos o governo pessoal, o profissionalismo e o direito de dizer quais deverão ser nossos membros. Abandonamos a beatice, a reforma e o paternalismo. Recusamos o generoso dinheiro de fora e decidimos viver à nossa custa. Queremos cooperar com praticamente todos, mas não permitimos que nossa sociedade seja unida a nenhuma. Não entramos em controvérsia pública e não discutimos, entre nós, coisas que dividem a sociedade: religião, política e reforma. Temos um único propósito, que é o de levar a mensagem de A.A. para o doente alcoólico que a deseja. Tomamos essas atitudes, não porque pretendemos virtudes especiais ou sabedoria; fazemos essas coisas porque a dura experiência nos tem ensinado que A.A. tem que sobreviver num mundo conturbado como é o de hoje.

Nós também abandonamos nossos direitos e nos sacrificamos, porque precisamos e, melhor ainda, por que quisemos. A.A. é uma força maior do que qualquer um de nós; ele precisa continuar existindo ou milhares de alcoólicos como nós certamente morrerão”.

Bill W.

Eis porque, plenamente solidário com os elevados propósitos e princípios que regem a nossa Irmandade, sentimo-nos verdadeiramente feliz em poder, mais uma vez, com vocês, desta feita, para dialogarmos sobre o controverso tema O Anonimato – Vivendo as Nossas Tradições, por sinal, assunto central da 39ª Conferência de Serviços Gerais de A.A., realizada na cidade de New York, no período de 23 a 29 de abril de 1989, reunindo servidores dos E.E.U.U./Canadá.

É oportuno ressaltar que todo cuidado foi tomado para que o nosso trabalho não se confunda com outras interpretações, de modo que, ao inserirmos breves e concisas noções sobre o tema enfocado, o fizemos na certeza de que, aqueles que as aceitarem, terão uma verdadeira compreensão do que fazem e porque o fazem.

Assim, faz-se necessário dizer que, pela simplicidade do trabalho, é bom de se ver que a sua finalidade outra não é senão a de subsidiar e orientar e, por isso mesmo, não dispensa a complementação eficiente de companheiros mais experientes, que vivenciam, com dedicação e zelo, o programa de recuperação oferecido por nossa instituição.

Por isso, imbuído, somente, da intenção de poder ser útil, alimentamos a esperança de que os conceitos aqui expostos sejam resposta para as dúvidas que se nos apresentam no dia-a-dia de nossa recuperação.

Desse modo, para que o tema enunciado seja desenvolvido, faz-se mister a conceituação do que venha a ser Anonimato, razão que nos leva a tentar esclarecer, sem a pretensão descabida da elucidação do termo. Será, assim, este trabalho, um lembrete aos companheiros, para que o tema levantado seja, posteriormente, aprofundado e enriquecido com experiências outras e saberes os mais diversos, sempre visando a ajudar ao alcoólico que sofre.

De uma forma geral, Anonimato é o artifício usado por aquelas pessoas que não querem ser identificadas. Para nós AAs, esse termo tem uma conotação mais abrangente, haja visto que representa o maior símbolo de sacrifício pessoal, a maior proteção que a Irmandade pode ter, a chave espiritual para todas as nossas Tradições e para todo o nosso modo de vida.

Escrevendo sobre o Anonimato, Bill W. diz em certo trecho: “Começamos a perceber que a palavra anônimo tem para nós uma grande significação espiritual. De maneira sutil, mas vigorosamente, lembramo-nos de que devemos colocar os princípios antes das personalidades; que renunciamos à glorificação pessoal em público; que. nosso movimento não apenas prega, porém pratica uma verdadeira humildade”.

Foi dentro desse princípio, de ajudar anonimamente, que Bill W. recusou o título de Doutor Honoris Causa que lhe fora oferecido por uma Universidade Norte americana; nesse mesmo passo, Bill W. renunciou a grande soma de dinheiro a ele oferecida por companhias cinematográficas norte-americanas, para filmar a sua vida; foi esse mesmo Bill que, recusando o prestígio pessoal, não permitiu que o seu retrato fosse estampado na capa da revista “Times”, quando de uma reportagem que ele solicitara sobre Alcoólicos Anônimos.

De outro lado, temos a clássica história envolvendo Bill, Dr. Bob e alguns de seus amigos. Conta-nos Bill que, “quando se soube com toda a segurança que o Dr. Bob estava para morrer, alguns de seus amigos sugeriram que se erguesse um monumento ou mausoléu em sua homenagem e à sua esposa Ane – algo digno de um fundador e de sua esposa. Naturalmente, esse era um tributo muito espontâneo e natural. O comitê chegou inclusive a mostrar-lhe um esboço do monumento proposto. Contando-me a esse respeito, o Dr. Bob sorriu e disse: “Deus os abençoe”. “Eles têm boa intenção, mas pelo amor de Deus, Bill, que sejamos enterrados, tanto você como eu, da mesma maneira como são todas as pessoas.”

O que nos deixa perplexo, é o fato do nosso co-fundador haver escrito há 35 anos atrás a realidade do mundo moderno. Em seu artigo: “Por que o A.A. é Anônimo” ele diz entre outras coisas: “Como nunca, a luta pelo poder, prestígio e riqueza, está arrasando a civilização – homem contra homem, família contra família, grupo contra grupo, nação contra nação. Quase todos aqueles envolvidos nessa violenta competição declaram que seus objetivos são: a paz e a justiça para eles mesmos, para seus semelhantes e para suas nações. “Dê a nós o poder”, eles dizem, e faremos justiça: dê a nós a fama, e daremos nosso grande exemplo; dê a nós o dinheiro, e ficaremos satisfeitos e felizes. As pessoas do mundo inteiro acreditam profundamente nisso e atuam de acordo com isso. Nessa espantosa bebedeira seca, a sociedade parece entrando num beco sem saída. O sinal “pare” está claramente marcado. Ele anuncia “desastre”.

Por isso, no mesmo artigo, ele acrescenta: “Quando o primeiro grupo de A.A. tomou forma, logo começamos a aprender muita coisa sobre o sacrifício e suas resultantes. Descobrimos que cada um de nós tinha que fazer sacrifícios pelo bem comum. O Grupo, por sua vez, descobriu que deveria renunciar a muitos de seus próprios direitos para garantir a proteção e bem-de cada membro, bem como de A.A. como um todo. Esses sacrifícios tinham que ser feitos ou A.A. não poderia continuar a existir.”

Toda a Irmandade tem conhecimento de que o Anonimato foi o tema que mais preocupou os nossos co-fundadores, haja vista a maneira errônea como tem sido interpretado pela maioria. A prova disso está no fato ocorrido quando de sua última mensagem enviada aos companheiros que lhe prestavam solidariedade, por ocasião dos seus 36 anos de sobriedade. Já sem forças, Bill pediu a Lois – sua esposa – que o representasse, lendo aos companheiros solidários a seguinte mensagem: “… meus pensamentos hoje são cheios de gratidão para com a nossa Associação, pelo sem número de bendições que nos tem dado a graça de Deus. Se me perguntassem qual dessas bendições era responsável por nosso crescimento como associação e mais vital para nossa continuidade, eu diria: “O Conceito do Anonimato””.

Feitas estas considerações, resta-nos à luz da literatura e experiências pessoais, vivenciadas no dia-a-dia de nossa recuperação, entrar no ponto axial do tema proposto, cuja essência está inserida nas 11ª e 12ª Tradições, in verbis:
“11ª Tradição – Nossas relações com o público baseiam-se na atração em vez da promoção. Cabe-nos sempre preservar o anonimato pessoal na imprensa, no rádio e em filmes.”

12ª Tradição – O anonimato é o alicerce espiritual das nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades”.

Embora, as 11ª e 12ª Tradições sejam completamente distintas, jamais poderão ser analisadas separadamente, haja vista que, ambas se completam para mostrar ao grande público, que Anônimos somos nós – membros de A.A. – e não a irmandade de Alcoólicos Anônimos. Portanto, a irmandade pode e deve ser divulgada, nós não. Enquanto a 11ª Tradição diz respeito ao Anonimato Pessoal, a 12ª encerra, pura e simplesmente, a Tradição do Anonimato.

Dissecando, então, o conteúdo dessas Tradições (11ª e 12ª), verifica-se com facilidade que a 11ª Tradição faz referência a preservação do Anonimato Pessoal, única e exclusivamente em termos de mídia, o que significa dizer, que não existe Anonimato em nossas relações interpessoais.

De outro lado, ao nos lembrar da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades, a 12ª Tradição visa demonstrar, de forma explícita, que a “substância do Anonimato é o sacrifício”, e que, é através desse sacrifício que devemos procurar vencer as paixões e submeter a nossa vontade individual em prol de toda uma coletividade.

Ante as razões apresentadas, é fácil concluir que:

  1. Quando um membro se identifica, como A.A., nas suas relações interpessoais, está, apenas, dando abertura ao seu Anonimato, o que, aliás, deve ser feito, sempre que possível, visando a ajudar ao alcoólatra que sofre. Se essa identificação ocorre em termos de mídia, aí está havendo a quebra da Tradição do Anonimato, o que, por sua vez, deve ser evitada sob pena de colocar as personalidades acima dos princípios.
  2. De outro lado, quando o membro identifica outra pessoa como seu companheiro de A.A. está, não só ferindo os princípios da irmandade, como também, quebrando a Tradição do Anonimato.
    Portanto, ao assumirmos a responsabilidade de levar a mensagem salvadora ao alcoólatra que sofre, devemos sempre ter em mente o seguinte:
    1. A informação pública é orientada pela Tradição; entretanto, a informação pessoal, muito mais eficiente, depende da vontade de cada membro.
    2. Nos nosso trabalho será bem mais eficiente se deixarmos que os outros nos recomendem.
    3. Não há Anonimato nas nossas relações interpessoais.
    4. Por princípio, não há quebra de Anonimato, mas, simplesmente, abertura do Anonimato. Quando existe a quebra, não é do Anonimato, mas da Tradição do Anonimato, o que são duas coisas bem distintas.
  3. Assim, procurando deixar o leitor bem familiarizado com o tema, nas suas mais diversas formas e aspectos, condensamos, dentro do possível, o que segue abaixo:
  4. Anonimato Pessoal: Deve ser mantido na Imprensa, no Rádio, na Televisão e no cinema, da seguinte forma:
    1. Na Imprensa – evitar fotografias e dá apenas o primeiro nome e a inicial do sobrenome.
    2. No Rádio – dá o nosso primeiro no¬me e a inicial do sobrenome.
    3. Na Televisão e no Cinema – aparecemos de costas ou de perfil, usando um jogo de luz e sombras que nos permita apenas transmitir nossas silhuetas. Aqui também só usaremos o primeiro nome e a inicial do sobrenome.
    4. Nas Correspondências – nos casos pessoais, devemos evitar a sigla “A.A.” nos envelopes; em outras ocasiões tomamos as seguintes precauções:
      • De companheiro para companheiro é uma correspondência normal, desde que tomemos os cuidados acima.
      • De grupo para grupo – é também uma correspondência normal, podendo inclusive ser usadas as iniciais “A.A.”.
      • De companheiro para grupo – evitamos o nosso nome e endereço no envelope, tendo em vista que o grupo está identificado como sendo de A.A.
      • De grupo para companheiro – usamos apenas o primeiro nome com a inicial do sobrenome do companheiro.
    5. Nas Reuniões – dependendo de sua natureza – aberta ou fechada -, tomamos os cuidados seguintes:
      • De caráter fechado – não há anonimato, tendo em vista que a ela têm acesso somente membros de A.A.
      • De caráter aberto – usamos apenas o primeiro nome, se o orador é membro de A.A.; se for não -A.A., usamos o nome completo, inclusive com sua profissão e posição social.
      • De pessoas falecidas – seguimos orientação dos familiares que, por certo, saberão do desejo do falecido quando vivo.
      • De pessoas celebres – a identificação de pessoas como membros de A.A., cabe a elas próprias, sejam célebres ou não.
    6. Anonimato das Listas Confidenciais – as listas é que não deveriam existir, pois nenhum benefício traz ao alcoólatra ou ao grupo.
    7. Anonimato da Doença – alcoolismo, como doença, é assunto da medicina.
    8. Anonimato de Grupos – não deverá existir, pois seu único objetivo é ajudar ao alcoólatra que sofre.
    9. Anonimato da Irmandade – não existe, haja visto que anônimos são seus membros.

Ao fim, se nenhum de nós desperdiçarmos publicamente nosso valor, ninguém possivelmente irá explorar A.A. para benefício pessoal. O Anonimato não é apenas algo para nos salvar da vergonha e do estigma alcoólico; seu propósito mais profundo é, na verdade, manter nossos egos tolos, sob controle, evitando que corramos atrás do dinheiro e da fama pública à custa de Alcoólicos Anônimos.

Com efeito, ainda em seu artigo “Por que Alcoólicos Anônimos é Anônimo”, Bill afirma: “… o temporário ou aparentemente bom pode muitas vezes não ser aquilo que é sempre o melhor. Quando se trata da sobrevivência de A.A., nem o nosso melhor será bom o suficiente.”

E conclui: “Agora nos damos conta de que cem por cento do anonimato diante do grande público é tão vital para a vida de A.A., como cem por cento de sobriedade o é para a vida de cada membro em particular”.

J. Costa
(Vivência – Out/Dez 89)