O A.A. e os profissionais

Dr. Laís Marques da Silva

Então Presidente da JUNAAB

 

Apresentação feita em painel do IX Congresso Brasileiro de Alcoolismo e outras Farmacodependências, realizado pela ABEAD, de 01 a 04 de maio de 1991, em Salvador-Bahia.

           Por várias razões, me sinto hoje feliz. Tenho vivido, nesses dias de congresso, o clima de entusiasmo e de alegria que permeiam a todos os que dele participam. Entendo que assim acontece pelo encontro de amigos, pelo orbitar em torno de uma cultura comum que nos une e porque aqui se trata daquela dimensão humana fundamental e capaz de mudar os sistemas que estruturam e conduzem a vida da humanidade e de libertar a existência humana, individual e coletivamente, das graves ameaças que sobre ela pairam; trata-se da construção do ser humano. Essa dimensão fundamental é o homem. Por certo, é, sobretudo, essa dimensão fundamental que nos inspira e contribui para nos fazer felizes nestes dias que aqui estamos vivemos.

          Aqui se vem tratando de assuntos que levam a uma maior capacitação técnica, indispensável ao exercício profissional de todos os que participam desse congresso. Por outro lado, em Alcoólicos Anônimos importa menos o alcoolismo e mais o alcoólico. Temos, em A.A., a mesma vocação humanística, entretanto, nele não se desenvolvem estudos ou pesquisas sobre o alcoolismo e nem se oferece qualquer tipo de tratamento clínico ou psiquiátrico, internação ou assistência social ou mesmo beneficente. Desta forma, não existe em A.A. a relação médico/paciente. Nas salas dos grupos de A.A. não faz tratamento, mas cuida-se dos doentes. Nelas ocorre o intercâmbio de experiências, forças e esperanças entre os seus membros, dentro de um clima marcado pela solidariedade humana. Cada membro relata o que foi o seu alcoolismo ativo e como se desenvolve o processo de recuperação ficando, com esses relatos, avivada em suas memórias a condição de doentes e o desejo de ficar abstinentes e de controlar a sua doença por meio de um programa chamado de “Os 12 Passos” que, embora tendo um cunho espiritual, não se prende a nenhuma seita, religião, ideologia ou sistema filosófico. Esse programa é seguido por alcoólicos de 134 países do mundo, não obstante suas imensas diferenças culturais, religiosas e étnicas, tendo sido ainda adotado por diversas outras irmandades, não ligadas a Alcoólicos Anônimos, por se mostrar altamente válido para os que vivem o drama da dependência química. Os membros dos grupos procuram tão somente resolver o seu problema comum e ajudar outros alcoólicos a se recuperar.

          A Irmandade de A.A. não apóia nem combate qualquer causa, nem mesmo o uso do álcool, que entende deva ficar vedado aos alcoolistas. Também não faz nenhuma promessa para que o alcoólico fique em A.A.. Isto explica o motivo pelo qual não se faz qualquer tipo de propaganda. Não se aliciam membros nem se persuadem pessoas para ingressar no A.A.. A Irmandade não faz promoção ou propaganda, mas tão somente age por atração enquanto que os resultados falam por si mesmos.

          Essas poucas ideias definem nitidamente o quadro de atuação, eventualmente simultânea com o tratamento que é realizado pela comunidade profissional, dos grupos de A.A. onde as vítimas do alcoolismo recebem atenções e cuidados com primazia para a dimensão espiritual do homem, no que se refere à dignidade da sua inteligência, da sua vontade e do seu coração. A Comunidade Profissional e a Irmandade de Alcoólicos Anônimos se completam ao responder ao fato de que o homem, na sua integralidade, vive também e ao mesmo tempo, na esfera dos valores materiais e dos espirituais.

          O alcoólico na ativa marca o seu comportamento pela negação, sua defesa característica, e também pela racionalização e pela projeção. Hábil em manipular situações e pessoas, acaba por não identificar o que é verdadeiro e o que é falso, movimentando-se em um mundo de desonestidade crescente que desintegra a sua vida. Aliás, a história ladeira abaixo do alcoólico é a história da desonestidade consigo mesmo e com os outros, desonestidade esta que dói porque ele sabe que não é a pessoa que pretendia ou pensava ser. Na vida do alcoólico, a desonestidade se torna um hábito, uma adição tão tenaz e falaciosa como o alcoolismo em si e, se o alcoólico não encontra o seu verdadeiro eu, então ele necessita da honestidade dos outros membros do grupo para encontrar a sua própria honestidade.

          Nos grupos, o alcoólico participa de reuniões informais, sem diálogo, onde relata as experiências vividas no período do seu alcoolismo ativo e também da sua recuperação. Ao fazer o seu depoimento, o alcoólico fala para outros companheiros que, como ele, tiveram vivências semelhantes e aí se muda o curso do seu comportamento habitual. Ao invés da negação, passa a fazer o jogo da verdade, jogo inteiramente novo e radicalmente diferente daquele a que estava acostumado e isso pela simples razão de que não pode mentir para os que o ouvem e nem mesmo tentar manipulá-los. Os que participam de uma reunião de A.A. têm, usualmente, uma longa experiência, ouviram muitas e muitas histórias de outros alcoólicos e conhecem bem as falácias da negação e do ocultamento, além do fato de já terem saído desse padrão de comportamento. É nesse novo jogo que o alcoólico vai descobrir aspectos desconhecidos do seu ser, da sua vida. A honestidade, desenvolvida dessa maneira, cresce e se expande para outras áreas das suas vidas.

          Nas salas de reuniões dos grupos estão alcoólicos que escutam e que compreendem os fatos e também as circunstâncias relatadas exatamente por serem igualmente alcoólicos, por terem essa “qualidade” de serem alcoólicos; outras pessoas, sem essas experiências, não poderiam fazer o mesmo.  O alcoolismo dos que ouvem é posto a serviço daquele que faz o seu depoimento, o que serve, ao mesmo tempo, para reavivar a atenção para o fato de serem doentes e para a necessidade de permanecerem dentro do programa de recuperação. Ou seja, dando recebem e recebendo dão. É uma maravilhosa via de mão dupla. É o crescimento na procura dos iguais.

          Ao praticar os 12 Passos, o alcoólico reformula todo o seu modo de viver, recupera o equilíbrio psíquico e readquire valores éticos, morais e espirituais. Ao fazer o 1º Passo, o alcoólico aceita a sua impotência diante do álcool e a incapacidade de governar a sua vida. Aceita a sua realidade e, com isso, se sente também aliviado do seu sentimento de culpa. Nos Passos de Inventário e Aperfeiçoamento, especialmente nos de números 4, 8 e 9, encontra maior ajuda no que se refere ao seu sentimento de culpa. Os Passos de números 5, 6 e 7 agem como um bisturi que incisa e drena um abscesso, só que, no caso, drenam a negação orgulhosa, as dolorosas vergonhas e as humilhações, ou seja, aqueles sofrimentos que decorrem da falha ou defeito no ser, aquela falha ou deficiência em viver à altura dos próprios ideais, de sentir-se sem valor, enfim, daquelas feridas que doem profundamente.

          Dentro do grupo, gradativamente, porém de modo progressivo, tudo muda no psiquismo do alcoólico e esta mudança abre perspectivas para uma vida de liberdade, para a descoberta da beleza do mundo vista com os sentidos limpos e claros e sem a cortina do álcool. A frequência numa sala de A.A. leva a uma ligação cada vez maior com a sua consciência e passa a ter na autoestima, no autocontrole e na liberdade uma nova e feliz vida, mais feliz do que tudo que o havia aprendido como bom com o uso do álcool. No A.A., o alcoólico entende que não é alguém que não pode beber mas, sobretudo, que é uma pessoa que pode não beber, que ganhou a liberdade. Muitas vezes, o bebedor ativo voltou-se para o álcool na procura de liberdade e se tornou dependente dele, enquanto que o alcoólico em recuperação procura a libertação do álcool.

          Tudo começa “botando a rolha na garrafa”, mas para viver como um alcoólico sóbrio e com serenidade é preciso progredir na recuperação e aí as coisas se mostram mais complexas. É muito árduo o caminho que leva ao aprendizado de valores que permitem reconquistar a capacidade de avaliar e de adquirir uma sensibilidade crescente em relação aos preceitos éticos e morais que dão base ao estabelecimento de prioridades que definem uma nova vida e dão condições de viver num mundo muitas vezes desprovido dessas virtudes. Mas tenho visto isso acontecer na Irmandade Alcoólicos Anônimos. Tenho visto isso acontecer com indivíduos que tiveram as suas vidas desintegradas e destroçadas pela dependência do álcool, tenho visto com um sentimento de maravilha porque vivemos num mundo que é, em certa medida, uma terra desencantada diante da tecnologia, não porque a ciência, a tecnologia ou ainda o método científico sejam maus, mas porque nada podem acrescentar aos valores ou ao significado da vida, ou mesmo ao que realmente seja ser humano.

          Em nome do que sou, não poderia deixar de trazer-lhes esse testemunho.