Iguais e diferentes, diferentes e iguais

Dr. Lais Marques da Silva

Custódio não alcoólico por nove anos e Presidente da JUNAAB por seis

Dizemos em A.A. que somos todos iguais. Isso é confortável, sentimos a força da união, a solidariedade que nos ampara. Mas também sabemos que somos diferentes e que ser diferente é muito importante porque podemos, ao compartilhar as nossas muito particulares riquezas interiores, crescer no convívio com os companheiros. Todas as riquezas interiores são muito importantes para o nosso próprio crescimento espiritual e para o dos nossos companheiros.

Mas somos, ao mesmo tempo, iguais e diferentes e essa contradição aparente às vezes nos incomoda, sobretudo quando percebemos que, em certos momentos, somos mais iguais do que diferentes e, pelo contrário, às vezes, mais diferentes do que iguais. Há um desconforto interior intrigante. Por isso, é oportuno meditar um pouco sobre essa realidade e aprofundar mais o estudo das nossas relações.

Entre os povos antigos, especialmente entre os gregos, e estamos falando de um tempo de mais de mil anos antes de Cristo, do ponto de vista dos costumes e da moral, havia grande desigualdade e pesada hierarquia entre as pessoas; existiam superiores e inferiores. A virtude e a excelência de uns e a escravidão de outros, e nada se podia fazer quanto a isso.

Com o surgimento do cristianismo, essa tradição foi rompida e criada uma igualdade moral. Passou a não mais importar a competência, a excelência e o talento mas sim o uso que se fazia dessas competências. O que era moralmente importante não era mais a força, a inteligência, a riqueza, a astúcia ou a beleza mas o uso que se fazia de tudo isso.

A força que operou essa mudança foi a Parábola dos Talentos, que é uma exortação para que usemos as nossas habilidades pessoais, talentos, dons, capacidades, possibilidades e também oportunidades em favor dos outros. Além disso, exortou que multipliquemos mais ainda esses nossos talentos e que tudo isso usemos em favor dos outros e, no nosso caso, do alcoólico que ainda sofre e, não agir assim, passou a implicar em estar sujeito a um juízo de natureza moral, pois que o servo que apenas os guardou e não multiplicou foi considerado como mau e preguiçoso. O uso dos nossos talentos é o que nos move e nos iguala a todos no curso das nossas ações, a despeito de sermos desiguais no que se refere às nossas competências.

Outra decorrência é que, para que possamos agir dessa maneira é preciso que sejamos livres, livres da escravidão, da dependência. A reflexão moral se deslocou para o uso dos talentos e para a importância da liberdade para usar esses mesmos talentos e é esse uso que nos iguala, não obstante sermos desiguais nas nossas competências. Aí passamos a ter igualdade e liberdade e esse novo modo de pensar e agir permanece até o fim dos nossos dias. Isso é de tal forma importante que até a Revolução Francesa estava assentada no legado da igualdade e da liberdade, e ainda na decorrente fraternidade.

Somos iguais, sem qualquer diferença, enquanto no exercício da nossa vontade de oferecer aos que ainda sofrem no alcoolismo toda a nossa experiência, as lições que aprendemos e a nossa boa vontade, a única coisa boa que podemos garantir que seja realmente boa. Não é possível conceber coisa alguma no mundo que, sem restrições, possa ser considerada boa, a não ser uma só, uma boa-vontade. Tudo é discutível e uma coisa pode ser boa para uns e não para outros e tudo não será sempre bom ou mal, e para todos. O que importa é a boa-vontade e tudo depende do uso que se faz das coisas, pois nada é um bem em si.

Tudo isso nos leva à recuperação e a oferecer os nossos talentos quando nos dedicamos à recuperação dos que ainda sofrem no alcoolismo. Aí somos iguais, numa só ideia, num só modo de agir. E somos fortes por isso.

Esses pensamentos nos ajudam a entender como é de importância fundamental estar em serviço em A.A.. Menos pelo serviço em si e mais pela decisão, própria e pessoal, de servir, porque nessa decisão está uma das chaves necessárias para entrar no Castelo da Recuperação.