De filho a pai

Um companheiro relata como foi ter pai alcoólico, ser pai alcoólico, e sentir-se um bom pai pela primeira vez, aos 60 anos, como fruto do equilíbrio adquirido na prática do programa de A.A.

Meu pai chamava-se Nelson. Morreu prematuramente, aos 33 anos, alcoolizado, quando eu tinha apenas cinco. Apesar da pouca convivência, lembro-me das brigas entre ele e minha mãe, almoços de domingo com choros e pratos quebrados. A fama de meu pai na família acompanhou-me durante a infância e adolescência. Ele era visto como irresponsável, que às vezes sumia durante dias e voltava todo estropiado. Minha mãe dizia que ele sofria de três pês: pinga, pescarias e prostitutas. Exatamente nessa ordem, muitas vezes com os três pês juntos.

Quando eu era pequeno, os parentes davam-me conselhos do tipo você é o homem da casa! Tem que cuidar da sua mãe e sua irmã! Olhe lá, não vá fazer como seu pai! Depois, na adolescência, quando comecei a beber, usar outras drogas e andar em más companhias, passei a ouvir: esse aí não nega o sangue, é mesmo filho do Nelson, não podia virar boa coisa! Ao invés de ser orientado, passei a ser acusado de ser filho do meu pai.

Continuei sendo um alcoólico filho de alcoólico até meus trinta anos, quando também virei pai. Mas nunca consegui dar carinho para minha filha, nem ao menos contar-lhe uma história antes de dormir. Tampouco consegui ensinar-lhe coisas básicas que um pai ensina aos filhos, como nadar ou andar de bicicleta. Eu vivia pensando em mim – e no álcool.

Aos 35 anos, ingressei em A.A. Parei de beber, mas não segui cuidadosamente os Doze Passos. Fiquei abstêmio durante quinze anos, quando finalmente recaí. Aos 55 anos, voltei para A.A., novamente derrotado pelo alcoolismo, sem controle sobre minha vida e, ainda, sem condições de ser bom pai. Sentia um medo aterrorizante de não conseguir lidar com algum acidente ou problema sério envolvendo minha filha ou a esposa. Medo da culpa que sentiria por isso.

Pela segunda vez, parei de beber, mas demorei para passar a ser verdadeiramente honesto comigo mesmo e com os outros. Quando consegui dar meus primeiros passos na honestidade, tudo começou a mudar. Parei de contar mentirinhas e exageros, de esconder minhas falhas e de manipular. Coisas ditas pequenas, mas que resultaram em enormes benefícios.

De repente, pessoas começaram a confiar em mim, cheguei até a conseguir, pela primeira vez, alguns afilhados no grupo-base. Fui capaz de fazer – e também de ouvir – um Quinto Passo honesto, sentindo a emoção transformadora desse Passo. Fui parando de pretender controlar tudo, de querer tudo do meu jeito e na minha hora. Coisas difíceis de fazer no início, mas fáceis depois de algum treino. Descobri, maravilhado, que pessoas agem sem que ninguém as mande agir. Apenas agem no seu tempo, do seu jeito.

Em casa, atualmente, minha mulher, minha filha e eu fazemos nossas refeições juntos – sem discussões, cara amarrada ou silêncio raivoso. Também, conversamos sobre assuntos que nunca abordamos antes. Cada vez mais, confiamos uns nos outros. Compartilhamos dificuldades, alegrias e projetos, sem julgamentos, mentiras nem enganações. 

Hoje, minha filha tem vida autônoma, conseguimos rir juntos, andamos juntos de bicicleta aos domingos. Ela aprende comigo, eu aprendo com ela. Aos poucos, temos conseguido trocar gestos de afeto. Há algum tempo, recebi dela um eu te amo espontâneo, pelo whatsapp. Foi a primeira vez, em meus 62 anos de vida, que isso aconteceu. E foi, também, a primeira vez em que me senti pai de verdade.

C.B. Edição: 174 – Página: 10