Cooperação sem afiliação

Por isso, dentro dos princípios e propósitos que regem a nossa Irmandade, sentimo-nos deveras satisfeitos e agradecidos a Deus, na forma como O concebemos, pela oportunidade de, mais uma vez, poder sentir o calor e a força espiritual desta Augusta Assembléia, atendendo ao chamamento que nos foi feito para dialogarmos sobre o festejado tema “Cooperação sem afiliação”, assunto demasiadamente polêmico, que se nos apresenta por demais fascinante e rico de interpretações.

Ao estudar amplamente a história do A.A., criamos uma maior condição para melhor compreender sua finalidade. Este conhecimento histórico nos permite delinear, ainda que com grande faixa de erro, um perfil de “quem somos, de onde viemos e para onde vamos”.

A compreensão deste fato nos leva a uma verdade maior. Sua existência depende da minha cooperação, enquanto a minha vida depende da sua ajuda, de modo que, ambos, dependemos da cooperação de todos os outros indivíduos, mesmo sem afiliação.

Basta lembrarmo-nos da figura lendária de Robinson Crusoé, para subitamente percebermos que, sem a cooperação de outros, é difícil viver. Pensem em quantas mentes, quantas habilidades, quantas profissões e quantos ofícios são necessários para nos suprir de todas as coisas materiais e de todos os confortos da vida. Olhe ao seu redor; a cadeira em que está sentado, a literatura que está à sua mão, o som que está sendo usado, as lâmpadas e os outros materiais que compõem este recinto; de todas estas coisas necessitamos, e todas resultaram da cooperação de outrem. Assim, a menos que estejamos cooperando para levar a mensagem de que os outros necessitam, nossa sobriedade é desperdiçada e não estamos cumprindo o dever de ajuda mútua, procurando “dar de graça o que de graça recebemos”.

Dessa forma passamos a nos encarar, não como personalidades individuais, mas; como partes componentes de toda uma civilização humana. Somente deste modo compreendemos que somos uma grande família de alcoólatras em recuperação, buscando outros alcoólicos que, agora, neste momento, estão no lugar por onde todos nós passamos, esperando a cooperação de uma mão salvadora para trazê-los ao nosso convívio.

Entretanto, para que isso aconteça, se faz necessário o surgimento do nosso mais alto valor como Irmandade, representado pelo dever da fraternidade. Este sentimento fraternal deve alcançar a todos os seres humanos, portadores da doença do alcoolismo, estejam sóbrios ou bebendo, independentemente de raça, cor, sexo, etc.

Então, como condição primeira para atingir esse estado de equilíbrio, impõe-se a cooperação em forma de obediência, não a obediência servil da afiliação, mas aquela que faz respeitar princípios e, também, a razão de todos e de cada um. Só assim, seremos livres e, portanto, bem orientados pelos ditames da consciência, a fim de que não sejamos indiferentes com aqueles portadores da nossa mesma doença, e que, como nós, precisam ser salvos desse flagelo da humanidade chamado alcoolismo. Feitas as considerações pertinentes, resta-nos à luz da nossa literatura passar ao ponto axial deste tema o qual se prende não só ao que se deve fazer, mas, principalmente, a forma como deve ser feita e por quem, de modo que possamos manter o princípio da cooperação com todos os segmentos da sociedade, sem o perigo desastroso da Afiliação.

Quem acompanha a nossa história, sabe que a Irmandade de Alcoólicos Anônimos teve seu início ligado a grandes amigos e beneméritas instituições de tratamento. Sem a cooperação desses notáveis colaboradores, a história de A.A. teria tomado um rumo diferente e, talvez, esse grande empreendimento de recuperação de alcoólicos, tivesse perecido em seu nascedouro.

Inicialmente, temos a figura impar do Dr. William Ducan Silkworth – “o doutorzinho que adorava os bêbados” – tido como a pessoa que conhecia mais de perto o problema alcoólico do nosso co-fundador Bill. Daí a sua serenidade diante do estado de desespero de Bill, quando do seu despertar espiritual no Towns Hospital, em dezembro de 1934. Foi o Dr. Silkworth o incentivador permanente de Bill em sua notável caminhada que aproou na fundação dessa Irmandade salvadora de nossas vidas.

– “Não Bill, disse ele, você não está com alucinação; seja o que for que você tenha tido, é melhor se apoiar nisso; isso é muito melhor do que aquilo que você tinha há somente uma hora atrás”. Como resultado destas palavras animadoras do Dr. Silkworth, Bill parou de beber, a partir daquela data, levando sua sobriedade ao túmulo, no dia 24 de janeiro de 1971.

Graças ao Poder Superior, ao parar de beber, Bill iniciara um movimento que salvaria a vida de milhões de criaturas, inclusive as nossas. Seis meses depois, é ainda o Dr. Silkworth quem ensina a Bill a fórmula mágica de abordagem, onde ele enfatiza: “pare de lhes pregar sermões e lhes dê primeiro os duros fatos médicos. Isto pode acalmá-los tão profundamente que possam vir a querer fazer qualquer coisa para ficar bem. Então poderão aceitar aquelas suas idéias espirituais e ainda um Poder Superior”.

Foi o Hospital St. Thomas, o primeiro hospital religioso a receber prováveis membros de AA. para um tratamento regular. Nesse hospital se desenvolveu a grande amizade entre o Dr. Bob e a Irmã Ignatia, fazendo-nos lembrar a clássica histórica do primeiro bêbado que ela e o Dr. Bob trataram. Esse bêbado foi introduzido naquele nosocômio pela floricultura do hospital, haja visto que a supervisara da Instituição não estava interessada em alcoólicos, especialmente naqueles que tinham “delirium tremens”. A autora da façanha foi aquela que mais tarde viria a se tornar a notável colaboradora de A.A., a Irmã Ignatia.

Posteriormente, surgiram outros colaboradores, como: “SAM SHOEMAKER, o clérigo episcopal cujos ensinamentos inspiraram os co-fundadores e os primeiros membros de A.A.”. “Padre Ed, o padre católico cuja influência pessoal e trabalho para AA muito tem contribuído para fazer nossa sociedade ser o que é hoje.” “Willard Richardson foi um personagem-chave no crescimento de A.A. Ele representa uma classe de homens a quem Alcoólicos Anônimos muito deve”.

Assim, a história de AA já em seus primórdios, se confunde com a história da cooperação de pessoas e instituições estranhas à Irmandade, mas que nos deram uma ajuda inestimável. Clérigos e leigos, abastados homens de negócios, médicos, instituições públicas e particulares, todos entraram na mesma luta, venderam a mesma ideia, empolgaram o mesmo ideal de levar a mensagem salvadora de A.A. ao alcoólatra sofredor; tudo isto, naturalmente, sem nenhuma afiliação.

Sem sombra de dúvida, foi a Associação Médica Americana, quem propiciou o reconhecimento de AA. como terapia alternativa, para tratamento do alcoolismo pela classe médica. A importância desse reconhecimento tem tido um valor incomensurável para nós. Não menos importante foi o endosso do Psiquiatra Dr. Harry Tiebout, o primeiro a introduzir o A.A. em sua profissão, fazendo-o conhecido. Esse namoro da psiquiatria com o A.A. resultou num casamento indissolúvel, que continua até hoje, para a felicidade nossa e de milhões de alcoólicos que estão necessitando da mensagem.

Entretanto, é oportuno ressaltar que, ao levar a mensagem, se faz necessária a familiaridade com alguns conhecimentos básicos essenciais, próprios da COOPERAÇÃO SEM AFILIAÇÃO.

De princípio somos conscientes de que, “da Unidade de A.A. dependem as nossas vidas e as vidas daqueles que virão. Não importa o que tenha feito ou o que venha a fazer; você é membro de A.A. contanto que você o diga.” Acrescente-se a isso o fato de que “quando duas ou três pessoas estiverem reunidas com o propósito de alcançar a sobriedade, podem chamar a si mesmas de um Grupo de A.A., contando que, como grupo, não tenham outra afiliação. Podemos cooperar com qualquer um, mas o nome de Alcoólicos Anônimos deve ser reservado só para nós”.

Ademais, “nunca devemos usar o nome de A.A., na busca de poder pessoal, fama, dinheiro ou prestígio; no momento em que emprestamos o nome de A.A. para qualquer empreendimento de fora, entramos em sérias dificuldades. “Por isso, quanto mais o A.A. se preocupa com seus próprios assuntos, maior será a nossa influência diante do grande público.” Assim, ´é melhor deixar que os nossos amigos nos recomendem´, pois o A.A. não pode ser conduzido como empresa de espetáculos, mesmo que hajam benefícios a curto prazo”.

Se os nossos pioneiros, na primeira metade do século andaram às apalpe delas, hoje, depois de mais de cinqüenta anos de funcionamento da Irmandade, dispomos de instrumentos modernos e eficazes, de técnicas versáteis para fazer chegar a mensagem a todos que dela precisem e a queiram; hoje temos a eficiência dos Comitês de Informação ao Público CP, de Cooperação com a Comunidade Profissional – CCP e de Instituições CI, este subdividido em Correcionais e de Tratamento.

Comitê de Informação ao Público – CIP: “O CIP” tenta alcançar o alcoólico, tanto direta como indiretamente, de três maneiras:

• a) Informando ao público em geral acerca do programa de A.A.

• b) Informando “a terceira pessoa”, sobre o que é o trabalho e o que pode ser feito com o alcoólico ativo.

• c) Mantendo a Irmandade bem informada, de forma que os membros e grupos possam levar a mensagem mais efetivamente.

Atenção especial será dada aos hospitais, clínicas, sanatórios e casas de repouso, especializados ou não no campo do alcoolismo, cujos diretores e corpo médico receberão informações a respeito da Irmandade, como preparação do ambiente para uma nova visita do CCP que, por sua vez, oferecerá os préstimos do CI”.

Comitê de Cooperação com a Comunidade Profissional – CCP: “Por força da função que desempenha, o CCP deve ter em suas fieiras elementos dotados de capacidade intelectual, apresentação e comunicabilidade, a fim de que possa exercer a contento sua tarefa”. Seus membros terão a função de contatar e transformar em amigos da Irmandade, autoridades civis e militares do Estado e dos Municípios, bispos, grandes empresários, diretores dos hospitais mais importantes, responsáveis por Associações de Classe, instituições assistenciais, etc.

Comitê de Instituições – CI: O primeiro passo junto ao hospital será dado pelo CCP, que contatará com o Diretor ou responsável pela instituição e lhe explicará a respeito do funcionamento da Irmandade e os objetivos do CI, a fim de que possamos obter resultados satisfatórios. Uma vez conseguida a anuência da chefia para iniciar os trabalhos do CI, o CCP providenciará junto ao CIP, tantas palestras quantas forem necessárias ao esclarecimento do pessoal interno da instituição hospitalar em questão, momento em que os companheiros do CI serão apresentados aos funcionários integrantes da equipe médica. Só então, numa terceira etapa, é que os trabalhos do CI serão realizados num sistema de cooperação sem afiliação. Ressalte-se que, enquanto o CIP leva informação ao público em geral e o CI coordena a manutenção dos grupos em instituições de tratamento e correcionais, o CCP leva a informação inicial aos líderes profissionais, em conjunto ou isoladamente.

Outro aspecto de vital importância é o estruturamento de relações e a mútua cooperação sem afiliação do CI com as clínicas especializadas que usam o programa de A.A. no tratamento de alcoólatras, eliminando definitivamente a possível hostilidade que ainda possa existir.

Grupos de Apoio: Como nas atividades normais do CI, a implantação dos grupos de apoio necessita do envolvimento do CCP, no contato inicial com a empresa, bem como a colaboração do CIP, na formulação de palestras informativas sobre o programa de A.A. e a Irmandade, deixando bem explicitado o que pretende e o que pode o A.A. oferecer para um trabalho mútuo de cooperação sem afiliação.

Impossível seria concluir este tema sem fazer referência aos Grupos Familiares de AL-ANON, dada a afinidade “sui-generis” que existe entre as duas Irmandades, ligadas por laços familiares desde suas origens. Entretanto, as Doze Tradições enfatizam que cada uma trabalha mais eficientemente se permanecer separada.

A Tradição Seis, especificamente, diz que o Al-Anon é uma Irmandade separada. Por isso, de acordo com esta Tradição, não pode haver nenhuma afiliação, associação ou união que resulte na perda da identidade de cada irmandade. As regras de separação excluem a afiliação ou fusão, mas não excluem a cooperação com A.A. ou atuação em conjunto para o benefício mútuo. O Al-Anon reconhece com gratidão a contribuição espiritual de A.A. e admite que pode continuar a haver cooperação entre Al-Anon e A.A. mesmo que hajam muitos membros do Al-Anon que não tenham contato com A.A. ou com membros de A.A.

Desta forma, fica suficientemente provado e comprovado que não devemos ter medo de nos aproximar daqueles que conosco podem cooperar; basta que não nos afastemos dos nossos princípios básicos, como visto anteriormente, principalmente das Doze Tradições, na sua totalidade. Podemos, portanto, cooperar e receber cooperação de hospitais, escolas, empresas, órgãos públicos, sem comprometer nossa autonomia e auto-suficiência. O que, na realidade, não podemos é profissionalizar o A.A., deixando de levar a mensagem ao alcoólatra que sofre.

Ao fim, resta-nos somente agradecer a todos aqueles que, direta ou indiretamente, têm cooperado para o caminhar da mensagem de A.A., fazendo nossas as palavras do mui digno Presidente da Junta de Custódios, Dr. José Nicoliello Viotti, in verbis:

“Aos nossos amigos não-alcoólicos, que conosco têm caminhado na colaboração, no entendimento e sobretudo no incentivo à nossa Irmandade, a expressão do nosso respeito pelo trabalho profissional no campo do alcoolismo. Juntos, haveremos de caminhar na realização do nosso objetivo comum: Trazer ao pleno convívio da família e da sociedade o nosso semelhante alcoólico”.

“Mais 24 horas de sobriedade”.

João Costa
(Vivência – Abr/Mai 89)